29 de outubro de 2014

A RAPOSA E AS FLORES DO DESERTO


Uma raposa do deserto peregrinava pela imensidão da Solidão à procura apenas de seu próprio vaguear.
Ela subia e descia dunas íngremes e se metia em raros e apertados espinheiros que ocasionalmente lhe rendiam alguma refeição amarga como pequenas cobras, raízes e alguns insetos cascudos.

No inicio do dia gostava de se espreguiçar por cima das pedras e captar um pouco do sol para esquentar os ossos das noites frias que castigam os infinitos grãos de areia daquela vastidão seca.

Seus olhos afiados viram ao longe, aos pés de uma duna, algo que se destacava na imensidão de Solidão e ela correu até ela para descobrir do que se tratava. Chegando perto pode ver uma flor das mais belas e formosas linhas que se erguiam sobre o mar de areias finas e destilava um perfume que vez ou outra a mais corajosa das abelhas vinha da mais longínqua colmeia para se deliciar de seu pólen, mesmo que a viagem sugasse sua energia, fazendo com que aquele fosse seu último voo - o que de fato acontecia.
Suas quatro pétalas eram levemente rosadas e adornadas de manchas e pontas esbranquiçadas. Em seu centro haviam também quatro estames e um pistilo. A flor havia desabrochado durante o cair da noite e deveria se fechar novamente dentro de poucos minutos para se proteger do forte sol.
Por dentro era delicada como a mais fina seda tecida pela mais exigente lagarta - embora por fora fosse rígida como uma casa de marimbondos.

Estonteado com tamanha beleza e sem entender o porque de algo tão belo nascer em meio a tanta sequidão, a raposa ficou um tempo deitado olhando de frente para a flor, buscando respostas para mais um desses mistérios que ocasionalmente aparecem por esses reinos.

Foi quando as grandes orelhas da raposa se viraram e ela pôde ouvir ao longe um chôro muito profundo e triste que foi ficando um pouco mais alto, como se alguém estivesse ao seu lado em prantos. E se levantou atenta para ver o que iria acontecer. Em seguida alguns pingos de chuva de uma minúscula e quase imperceptível nuvem caíram sobre a flor que parecia se regozijar daquele líquido.
Mesmo espantado, a raposa viu que aquilo de fato era parecido com o que ela já arquitetava em sua mente. Afinal de contas, raposa sempre foi um animal muito astuto.

Então quando se pensou que aquilo já havia passado, suas orelhas apontaram novamente para outra direção e ela pode então ouvir uma multidão de milhares de outras vozes de agonia e lamentações que fizeram com que seu coração estremecesse ao ponto em que todo o resto de seu corpo parou para deixar o peito recuperar o fôlego.
Percebeu que o som vinha dali de perto, além da duna aonde estava e subiu até o seu cume para ver o que seus olhos apelidaram de um mar de sangue rosado.

Haviam milhares e milhares de flores como aquelas que ele havia encontrado além daquela duna e uma enxurrada descia dos céus para alimentar cada uma delas. As vozes gemiam, gritavam, se lamentavam, pediam perdão, clemência, xingavam e se culpavam por cima das nuvens acizentadas que se erguiam sobre o vale rosado.
Foi quando as nuvens começaram a escurecer cada vez mais e delas saíram milhares de gafanhotos famintos que se derramaram por cima das flores como leões abatendo uma presa e começaram a devorá-las uma por uma.

As vozes foram se calando e o deserto começou a tremer, fazendo com que as dunas se movessem de um lugar para o outro. O ciclo natural das coisas estava se abalando.
No entanto, ao redor da primeira flor nada se movia, tudo permanecia calmo como antes porque os gafanhotos não tinha visto que ela estava lá. A raposa desceu o mais rápido que pode escorregando pela areia que agora começara a esquentar, fitou novamente a flor e viu que esta começou a se fechar muito vagarosamente para se proteger do calor que se aproximava. Com certo cuidado apressado, pegou-a entre os dentes e correu como o vento até que seus pulmões doessem e suas juntas não pudessem mais aguentar o peso de seu corpo, se esgueirando por cada toca nas rochas e brecha nas raras e densas vegetações.

Finalmente chegou até uma gruta em que poucos conheciam, escondida debaixo da própria Solidão, aonde tinha um rio de água abundante que bem mais adiante se dividia em muitos outros rios que chegavam em todos os outros reinos.
Soltou a flor no chão e viu que ela voltava a se abrir novamente, aproveitando o frescor da gruta.

Começou a refletir sobre tudo o que vira e ouvira até ali e reparou a importância daquela flor que agora era a única sobrevivente, uma espécie ameaçada de extinção. Algo estranho estava acontecendo que abalara cada pedacinho de Solidão, e embora não soubesse da onde vinha os gafanhotos, sabia bem que as flores estavam fazendo um trabalho útil para o lugar. Afinal, de que vale a Solidão sem os gritos dos desesperados? O desespero na multidão é muito mais desesperador e muito mais solitário! Sozinhos escutamos a nós mesmos, mas no meio de todos ninguém escuta o que realmente queremos dizer quando estamos angustiados. Aquele lugar sempre tinha sido seu refugio por saber que ninguém mais se atreveria a viver por ali e o sossego era algo que sempre buscara.

Mas só de pensar que todos os outros animais no mundo não teriam mais aonde depositar suas lágrimas, o próprio desespero começou a tomar conta da raposa que chorou bem baixinho, deixando cair três preciosas gotas em cima da última das flores do deserto.
A flor soltou então mais daquele perfume inebriante que tinha aguçado a curiosidade outrora, aquele mesmo a qual algumas abelhas literalmente morrem de desejo. E logo percebeu a importância daquelas flores para o mundo e o quão belo pode ser o sofrimento se visto com os olhos lavados de dentro para fora.

Logo três abelhas apareceram por virem atrás das flores e - procurando - encontraram apenas uma. A raposa, muito da esperta convenceu as três a ajudarem ela em seu plano para que todos saíssem ganhando. Elas poderiam descansar, não precisariam se matar de cansaço, poderiam ajudar a raposa a replantar mais daquelas flores usando sua polinização e em troca ela carregaria a colmeia delas até Solidão se assim quisessem, para aproveitar o quanto quisessem das flores - se também, é claro, ajudassem a defender o lugar de um eventual ataque de gafanhotos.

As abelhas compreenderam aquilo como uma grande barganha e logo estavam todos trabalhando para ver um vale ainda maior repleto de mais e mais flores rosadas com manchas brancas. As colmeias se multiplicaram ao redor do vale e formaram guarda dia e noite, impedindo qualquer exercito de gafanhotos de chegar perto.
Houve muito tempo para que a pequena raposa chegasse à conclusão de que como muitos lugares no reino, Solidão não respeitava as leis de tempo e espaço que estamos acostumados em nosso mundo. O lugar servia como depósito para as lágrimas daqueles que se sentiam solitários, e suas vozes e choros chegavam até lá para regar as flores do deserto - que futuramente dariam novos ares a cada lágrima derramada.

Aos poucos, Solidão nem parecia tão ruim assim, a comida já não era tão amarga em todos os lugares que se visitava, nem em todos os lugares a sequidão imperava. A densa e espinhosa vegetação sumiu um pouco e em seu lugar apareceram alguns oásis aonde alguns coqueiros e palmeiras faziam sombra. O próprio lamentar que caia do céu não era tão assustador como era antes. De fato haviam dias em que sequer se ouvia algum lamuriar no ar.

Os animais das redondezas que antes falavam mal de Solidão agora falavam que o lugar não era de todo ruim, muitos deles inclusive preferiam usar ele como caminho para chegar até onde queriam e para descansar os corações quando ninguém mais os entendiam.


- Vinicius Neves